Nunca o grau de descrença institucional foi tão grande. Das revoltas populares pelo mundo e dos protestos no Brasil podem emergir novos sujeitos políticos
por Vladimir Safatle Passados alguns meses das grandes manifestações de junho, a política brasileira parece querer, teimosamente, voltar aos seus mesmos fatos mesquinhos de sempre. Alguns poderiam se perguntar sobre o que exatamente ocorreu. Sabemos que um acontecimento, por mais intensidade que tenha em sua eclosão, é medido por sua capacidade de deixar marcas. Como, no caso brasileiro, os governos continuam nos seus lugares e os partidos políticos prosseguem com seus velhos cálculos de ocasião, alguns correm o risco de perder de vista o verdadeiro movimento.
Convém lembrar que um acontecimento político não é medido, necessariamente, pela modificação institucional que ele produz. Esta pode vir apenas décadas depois. Na verdade, um acontecimento político é medido pela sua capacidade de produzir novos sujeitos políticos. Trata-se de novas forças de desestabilização capazes de fazer circular outros nomes, dar visibilidade a novas lutas e demandas. Ou seja, um novo sujeito político traz sempre uma mutação por meio da qual o que até então era invisível ganha visibilidade.
Marx, por exemplo, entendeu muito claramente tal processo ao indicar o verdadeiro acontecimento político da segunda metade do século XIX: o aparecimento do proletariado. Até então, a Europa conhecera revoltas constantes de operários contra a opressão no trabalho, mas não eram visíveis seus vínculos. Todas pareciam revoltas ligadas a demandas localizadas: os baixos salários na Inglaterra, o trabalho infantil na França, a péssima condição das fábricas em Yorkshire. Foi necessário que uma nomeação ocorresse, que uma ideia se encarnasse, dando a todas essas lutas localizadas o sentido retroativo de um movimento geral de transformação global. Foi necessário uma palavra, “proletariado”, a nomear o que deveria se assumir como radicalmente desprovido de predicados.
Como salientara Marx, “proletário” indicava aqueles que não tinham nada, os despossuídos de qualquer bem, desprovidos de qualquer identidade e vínculos. E, para construir sua força, estes deveriam inicialmente se assumir como radicalmente “sem lugar”, ao menos no tempo presente. Só dessa forma eles transformariam sua fraqueza em força. Somente assim se constituiriam como novos sujeitos políticos.
É claro que todo acontecimento é acompanhado de perto por uma espécie de simulacro que visa anulá-lo, repetindo seu nome em um horizonte no qual sua força performativa de transformação se perde. A ascensão da força transformadora do proletariado foi seguida de perto pelo “proletariado” como seu próprio antídoto. Foi uma certa figura do operariado alemão que levou Hitler ao poder.
Foi outra do operariado norte-americano que se transformou em um setor de estabilização conservadora, como bem mostraram os estudos de Wright Mills sobre a “nova classe média” ianque.
Toda produção de um novo sujeito político é também a produção de sua sombra e de novos riscos.
Nesse sentido, podemos dizer que algo semelhante ocorre agora. Vemos, no mundo inteiro, revoltas de pessoas que se veem cada vez mais como pessoas sem rosto político. Pela sua recusa e sua raiva bruta elas parecem em processo de se assumir como radicalmente “sem lugar”, como se sentissem um profundo mal-estar com as palavras que até agora nomearam o campo do político, definiram seus atores. Eles são, cada vez mais, sujeitos sem predicados. Mas, certamente, estão em processo de autocriação como sujeitos políticos. Em algum momento acabarão por se encontrar com uma ideia com a força de nomeá-los.
Quem prefere não ver isso deveria meditar sobre alguns fatos bastante concretos. Por exemplo, desde junho, não houve sequer um único dia no qual não ocorreram manifestações neste país. Nunca o grau de descrença institucional foi tão grande, a ponto de uma multidão enfurecida querer depredar o Congresso Nacional e acabar por despejar sua revolta nas colunas do Palácio do Itamaraty. Coisas como essas uma sociedade não esquece jamais. Cenas como essas nunca vêm sozinhas.
http://www.cartacapital.com.br/revista/764/os-sem-lugar-na-atualidade-9406.html
Convém lembrar que um acontecimento político não é medido, necessariamente, pela modificação institucional que ele produz. Esta pode vir apenas décadas depois. Na verdade, um acontecimento político é medido pela sua capacidade de produzir novos sujeitos políticos. Trata-se de novas forças de desestabilização capazes de fazer circular outros nomes, dar visibilidade a novas lutas e demandas. Ou seja, um novo sujeito político traz sempre uma mutação por meio da qual o que até então era invisível ganha visibilidade.
Marx, por exemplo, entendeu muito claramente tal processo ao indicar o verdadeiro acontecimento político da segunda metade do século XIX: o aparecimento do proletariado. Até então, a Europa conhecera revoltas constantes de operários contra a opressão no trabalho, mas não eram visíveis seus vínculos. Todas pareciam revoltas ligadas a demandas localizadas: os baixos salários na Inglaterra, o trabalho infantil na França, a péssima condição das fábricas em Yorkshire. Foi necessário que uma nomeação ocorresse, que uma ideia se encarnasse, dando a todas essas lutas localizadas o sentido retroativo de um movimento geral de transformação global. Foi necessário uma palavra, “proletariado”, a nomear o que deveria se assumir como radicalmente desprovido de predicados.
Como salientara Marx, “proletário” indicava aqueles que não tinham nada, os despossuídos de qualquer bem, desprovidos de qualquer identidade e vínculos. E, para construir sua força, estes deveriam inicialmente se assumir como radicalmente “sem lugar”, ao menos no tempo presente. Só dessa forma eles transformariam sua fraqueza em força. Somente assim se constituiriam como novos sujeitos políticos.
É claro que todo acontecimento é acompanhado de perto por uma espécie de simulacro que visa anulá-lo, repetindo seu nome em um horizonte no qual sua força performativa de transformação se perde. A ascensão da força transformadora do proletariado foi seguida de perto pelo “proletariado” como seu próprio antídoto. Foi uma certa figura do operariado alemão que levou Hitler ao poder.
Foi outra do operariado norte-americano que se transformou em um setor de estabilização conservadora, como bem mostraram os estudos de Wright Mills sobre a “nova classe média” ianque.
Toda produção de um novo sujeito político é também a produção de sua sombra e de novos riscos.
Nesse sentido, podemos dizer que algo semelhante ocorre agora. Vemos, no mundo inteiro, revoltas de pessoas que se veem cada vez mais como pessoas sem rosto político. Pela sua recusa e sua raiva bruta elas parecem em processo de se assumir como radicalmente “sem lugar”, como se sentissem um profundo mal-estar com as palavras que até agora nomearam o campo do político, definiram seus atores. Eles são, cada vez mais, sujeitos sem predicados. Mas, certamente, estão em processo de autocriação como sujeitos políticos. Em algum momento acabarão por se encontrar com uma ideia com a força de nomeá-los.
Quem prefere não ver isso deveria meditar sobre alguns fatos bastante concretos. Por exemplo, desde junho, não houve sequer um único dia no qual não ocorreram manifestações neste país. Nunca o grau de descrença institucional foi tão grande, a ponto de uma multidão enfurecida querer depredar o Congresso Nacional e acabar por despejar sua revolta nas colunas do Palácio do Itamaraty. Coisas como essas uma sociedade não esquece jamais. Cenas como essas nunca vêm sozinhas.
http://www.cartacapital.com.br/revista/764/os-sem-lugar-na-atualidade-9406.html
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