Antonio Risério fala sobre pobreza no espaço urbano.
A pergunta é a seguinte: nós estamos mais para Bombaim ou para Nova York? Eu falo da cidade do Salvador, que tem crescido muito, inclusive em termos populacionais, nos últimos anos.
A pobreza de Salvador pode ser vista até por um marciano, pode ser vista de satélite...
Por outro lado, nossa elite, a elite que tem acesso aos meios de comunicação, que dirige jornais e televisões, alguns políticos, ficam sonhando ou pensando que é possível transformar Salvador em Nova York, Zurique... Uma cidade bonita, ordenada, sem barraca de praia, sem restaurantes no meio da rua, sem os cacetes armados, sem os camelôs. Sim - e o que a polícia administrativa, que no caso é a prefeitura, pode fazer para realizar o sonho dessa elite, que se manifesta até nos nomes dos novos empreendimentos imobiliários, tipo Manhattan Square, Vale do Loire, etc.?
Em primeiro lugar, eu acho que a gente deveria perguntar o que a polícia pode fazer com essa elite. Porque essa elite infringe todas as regras, não tem educação urbana, não tem uma visão do significado dessa cidade. Na verdade, eu acho uma coisa muito grave. Acho que a atual população de Salvador não está à altura da cidade que herdou. É por isso que está avacalhando a cidade a cada dia que passa. Salvador é uma cidade cada vez mais maltrada, mais feia. E tem uma elite desinformada, provinciana, mimética. Eu vivi minha adolescência na cidade de Jorge Amado, Vivaldo da Costa Lima, Pierre Verger, Carybé. E hoje é a cidade de quem? De Nizan Guanaes? Da axé music? Do Chiclete com Banana? Do prefeito que temos? Dos quadros políticos atuais? Esse é um drama da gente, hoje. Salvador é atualmente uma cidade grande, onde todo mundo pensa pequeno. Empresários, políticos, intelectuais, artistas... todo mundo. Quanto mais a cidade cresce, mais o pensamento é menor. Salvador virou um vilarejo com elefantíase e só tem programazinhos pontuais. Ela é administrada como uma cidade do interior. Essa elite, que quer escorraçar os pobres, é a mesma que não sabe se comportar com relação ao espaço urbano. E também invade calçadas e terrenos públicos. A gente precisa de uma grande polêmica, uma grande discussão, hoje, em Salvador.
Mas Salvador se prostituiu muito e se transformou numa cidade tida como o turismo sendo o grande gerador de emprego e renda e, portanto, tudo ao turismo. O carnaval de Salvador sendo louvado como a maior e mais democrática festa do planeta. Como é que isso bate na vida de Salvador, nos últimos anos?
Salvador continua desleixada, mas perdeu a sofisticação. Hoje, ela junta o que havia de pior em São Paulo com o que havia de pior aqui. O carnaval, eu acho que não existe mais. Existe uma festa aí que, por comodidade, a gente continua dando o nome de carnaval. Numa situação em que nem consegue ser o superespetáculo do carnaval carioca, nem uma festa de participação popular, como é o carnaval de Pernambuco. Essa é a miséria do carnaval local, nesse sentido de que virou uma porção de discotecas, chamadas camarotes, vendo shows de bandas. E, também nesse caso, não foi preciso chamar a polícia administrativa. Foi o próprio poder econômico da elite que escorraçou o povo das ruas.
Você acha que há um processo de acomodação generalizada, no sentido de: "olha, bota a sujeira toda debaixo do tapete e não vamos discutir"?
O problema é que não dá pra colocar a sujeira debaixo do tapete porque a sujeira é muito maior do que o tapete. E vai ser sempre maior se continuar do jeito que está. As pessoas falam da violência urbana, por exemplo, e se protegem nos condomínios. Violência urbana não tem nada a ver com pobreza, apenas. Em nossa adolescência, nós vivemos numa cidade pobre, mas que tinha trato urbano, civilidade, uma cidade que não tinha violência. A violência não é fruto da pobreza. Ela é fruto da desigualdade extrema, quando o povo é escorraçado. Quanto mais as desigualdades se acentuam, mais violência elas produzem. O medo que as pessoas sentem do espaço urbano é o medo que elas sentem de um espaço urbano que foi criado por elas. Foi criado pela estupidez e a ganância da elite. Ela criou uma situação em que ela foi expulsa das calçadas. E agora, para poder andar nas calçadas, ela tem que expulsar os pobres dali. Porque os pobres ocuparam o espaço urbano. E não há alternativa. O cara vai batalhar dinheiro é na sinaleira mesmo. E não adianta vir com bolsinha compensatória de 100 reais. Porque, se você batalha dinheiro numa sinaleira, ganha mais do que isso por mês. Os pobres, impedidos de desfrutar as belezas e os benefícios que a cidade tem e produz, eles vão tomar isso. Você tem hoje uma situação de "barrados no baile". Grande parte da população está barrada no baile. A classe média, regra geral, aceita ser barrada no baile, limita-se a um muxoxo dentro de casa, a uma tristeza. É uma resignação amargurada e silenciosa. Os mais pobres, não. Muitos deles não estão a fim de ficarem barrados no baile e não vão ficar resignados ou calados como a classe média. Eles vão sujar o baile. O Bauman viu isso. Porque lá dentro está rolando uma puta festa, com salgadinho, champanhe. E, ainda mais, com uma ideologia dominante muito cruel de que o êxito é o consumo. Hoje, quando você não tem dinheiro para participar do baile, isso não quer dizer só que você não tem dinheiro. Quer dizer que você fracassou como indivíduo, desde que o ser humano se realiza no consumo. A gente vive hoje numa sociedade em que o que se incrementa é a competitividade. As pessoas têm que estar preparadas para competir no mercado. Mas competir para quê? É a competição pela competição, é o êxito pessoal, é ter acesso ao baile. Agora, muito pouca gente tem acesso ao baile. E, enquanto a classe média vai ficar se lamentando, fazendo grevezinhas ocasionais, os outros vão como na música de Cazuza: "meu cartão de crédito é a navalha".
Tem um outro dado aí que é o tráfico de drogas, consumo e tráfico de drogas, que gera muito dinheiro...
E emprego.
Pois é, a economia informal da cidade gera mais que a formal... E gera muita violência em cima disso, muita repressão policial, muita corrupção. Corrupção policial, corrupção política, corrupção da Justiça. Como esse elemento, que não existia e que agora é cada vez mais forte em Salvador, pode mexer e já está mexendo no quadro em que a gente vive?
Não acho que o negócio das drogas tenha criado um "Estado paralelo", como falam. Pode até ter formas fragmentárias de atuação de tipo estatal, coisas filantrópicas, até tribunais e tal. Mas nem chega a ser uma organização para-estatal. É apenas um empresariado ilegal e o que você tem são grupos armados disputando espaços de mercado. Nem tem também essa história de guerra civil. Guerra civil é quando uma classe ou uma etnia, por exemplo, enfrenta outra, por questões econômicas, ideológicas, etc. Você tem mesmo é disputa de mercado, numa situação de ilegalidade. O tráfico oferece ao jovem pobre, além de aventura e risco, coisas que a juventude adora, dinheiro e acesso ao consumo. Você fica vendo o tempo todo, nas novelas da Globo, aquele padrão de vida ali... e vai ter acesso àquilo como? Ou tomando ou traficando, não há muitos caminhos. Não temos política educacional, a política de inclusão social ainda é muito fraca, não tem inclusão cultural, não tem nada. A periferia é abandonada e é um prato cheio, claro, para o tráfico. Com um agravante, hoje, que é o seguinte. Antes, a gente falava que o que distinguia o tráfico no Brasil era a base territorial. É um traço específico da bandidagem brasileira. Uma quadrilha controlava um morro no Rio, por exemplo, que então era fechado a outras quadrilhas. Aqui, também. Era a partir da base territorial que se negociava. Era isso que fazia, por exemplo, com que o crack não entrasse no Rio. Mas esse ano a gente viu que esse negócio foi detonado. O PCC passou a controlar financeiramente o tráfico carioca. Então, essas bases territoriais não existem mais. Continuam sob controle, mas não são fechadas ao jogo financeiro. O que existe hoje são redes de empresas do tráfico, sediadas em São Paulo, como as grandes empresas legais. Esse empresariado paralelo está no país todo e de forma organizada. Agora, para lidar com isso a gente também não pode ser hipócrita. É o óbvio: se existe tráfico, existem consumidores. Um sujeito que cheira pó, num apartamento de luxo na Vitória, não tem autoridade nenhuma para falar de tráfico e violência urbana. Ele tem que se ver como cúmplice, como partícipe do processo. Sem ele, o tráfico de drogas não existiria. Muita gente não tem consciência disso, fala como se o tráfico fosse uma coisa distante. Não é. Nós fazemos parte desse circuito comercial.
O fato de ser uma briga territorial faz com que determinadas áreas das cidades. Não entra polícia, nem serviços públicos, nem nada. Como se fosse um território estrangeiro.
E que foi criado graças à complacência dos poderes públicos, que nunca quiseram lidar com isso, sempre pactuaram, permitiram, e isso alimentado pelo conjunto da sociedade. Agora, é o seguinte. Essas bases territoriais distinguem o tráfico brasileiro do tráfico de Londres ou Nova York, por exemplo, onde você tem tráfico, mas não tem base territorial. E isso é uma coisa terrível aqui. Porque, com a base territorial, você tem comunidades controladas e pessoas que já nascem naquilo, né?
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