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Terceiro Ato: um puxão de orelha na esquerda brasileira

O que está nascendo nas ruas? Em quatro atos
Por  Hânder Leal, no blog Brasil de Fato

Deixando de lado os méritos das mobilizações recentes, faço desde já um alerta: há um desvio sóciocognitivo grave por grande parte dos movimentos sociais que têm se manifestado recentemente, como é típico de movimentos análogos que eclodem em outras partes do mundo nesses tempos de capitalismo falsamente trôpego. O protesto no Congresso Nacional e em outras sedes do poder público (que de poderoso e de público, na verdade, não tem nada), as ridículas petições pelo impeachment da Presidenta Dilma, o desvio de foco para a corrupção, dentre outras ações momentâneas ou não, embora partam de diferentes vertentes da marcha de descontentes que se forma no país, encobrem todas um grave problema: apesar de vigorosa e contagiante, a escolha dos alvos das mobilizações populares recentes mostra que a massa crítica vanguardista brasileira dessa nova geração ainda está para descobrir que a democracia é um embuste do capital.

No sistema democrático de governo, os políticos operam como verdadeiros bodes expiatórios do capital nacional e internacional. Enquanto o povo toma o Congresso Nacional, o lucro Brasil foge num clique para os paraísos fiscais e para as economias desenvolvidas no exterior. Por quê? Acredite, não é por causa de nenhum dos três poderes que constituem o Estado democrático de direito no Brasil, tampouco é algo que se possa solucionar com a convocação de uma nova Assembleia Nacional Constituinte. Antes fosse: a mudança social seria menos custosa e as bandeiras de esquerda teriam outra cor. As causas das manifestações são estruturais, conforme tentei deixar claro no primeiro ato.

Desconsiderar isso é a mesma coisa que servir de massa de manobra (i) das forças de oposição ao governo, ávidas por uma crise de governabilidade que lhes permita livrar-se do alinhamento circunstancial ao Partido dos Trabalhadores e retomar a vanguarda no seu papel histórico de defensoras dos interesses elitistas e (ii) da própria base governista centrista.  

O brasileiro está com um ponto de interrogação estampado na testa pois fomos educados e adestrados para conceber qualquer solução política possível apenas dentro do maniqueísmo “ditadura vs. democracia”. Não importa o quanto mude a situação da sociedade brasileira: não importa que um terço da população passe a exigir seus direitos pela primeira vez na história; tampouco importa que os brasileiros tomem as ruas do país para protestar. Isso não é uma questão institucional; é uma questão cultural. Nada pode ser mais conveniente para o embuste democrático orquestrado pelos grupos de poder do que uma esquerda que, ao invés de propor uma agenda positiva de esquerda e a retomada de seu papel histórico, aceita como inimigo o fantasma capengo da ditadura, ressuscitado por uma imprensa calhorda, detentora do monopólio midiático espetacular.

A estratégia dos poderosos para confundir os movimentos de esquerda é complexa mas pode ser resumida nos seguintes passos. Primeiro, cooptar os movimentos sociais e convencer a população a não interagir com os verdadeiros partidos de esquerda nos quais surgiram as principais lideranças desses movimentos (vale lembrar que centro-esquerda não é esquerda). Segundo: o povo atônito engrossa a multidão de descontentes de forma anônima e apartidária. Terceiro, uma vez bloqueado o elo entre o povo e os partidos de esquerda, a população passa a acreditar que o único caminho para a mudança é o próprio fortalecimento das instituições que regem o espetáculo democrático.

Por outro lado, cabe à esquerda compreender que não há a mínima possibilidade de que tenhamos um retrocesso à ditadura militar no Brasil. E isso se deve não a uma ausência de vulnerabilidade popular ao discurso da moralidade propagado pela direita. Essa vulnerabilidade existe e é latente. Mas meus caros, o motivo é muito mais simples e concreto: a história nos mostra que lucra-se muito mais no regime democrático do que em qualquer regime ditatorial. Pense nas privatizações, no crescimento econômico e na inserção internacional do Brasil no período pós-redemocratização; pense no crescimento vertiginoso do PIB mundial e da concentração de renda per capita após o fim da Guerra Fria e a implementação da democracia liberal sobre três quintos da população mundial.

Aliás, nada mais sintomático do embuste democrático do que a união de todas as frentes do complexo democrático espetacular contra um suposto inimigo comum, o elo transitório e mais fraco da corrente, a classe política, testa de ferro das elites que a controla. Nada mais natural que personalidades famosas, vinculadas institucionalmente à política ou não, elejam esse alvo para os seus ataques de grande apelo popular. Copa do mundo, democracia espetacular, Estado democrático de direito: nada disso está ameaçado. Meus caros, essas manobras apenas representam o modo como o espetáculo democrático renova-se para sustentar-se a si mesmo e não chegar a lugar algum.

Vivemos um momento crucial na história da esquerda, e não da direita brasileira. Não nos deixemos enganar pelos anônimos hollywoodianos mascarados nas ruas do país. O problema é que três décadas de democracia acabaram por domesticar a nossa esquerda. Cair na armadilha do fantasma do regime militar e acreditar que metade da nação está flertando com a ditadura é uma falha de uma esquerda carente de projeto substantivo e que parece desconhecer seu papel histórico. Ultimamente o descrédito tem atingido até mesmo a parcela da mídia que até ontem se dizia de esquerda. A reorganização dos movimentos de esquerda brasileiros não se dará através do discurso alarmista do retorno ao Estado ditatorial; discurso esse, aliás, propagado a partir da própria base governista. Muito pelo contrário; esse é um mito oportunista que deve ser imediatamente derrubado. A esquerda tem que se desvencilhar do alarmismo que os grandes grupos de poder pretendem conferir às manifestações.

Acreditar que testemunhamos o retorno do fascismo, comparar as manifestações recentes aos movimentos que precederam ao golpe militar de 1964, dentre outras peripécias mirabolantes ainda mais anacrônicas, ingênuas e simplórias apenas contribui para enriquecer o universo especulativo que renova e perpetua o embuste democrático espetacular a cada ameaça que lhe surge no transcorrer da história.

Confesso que quando comecei a escrever, minha intenção era dar apenas um puxão de orelha na esquerda brasileira. Mas pelo tanto que escrevi até aqui, seria eufemismo chamar uma mijada dessas de um puxãozinho de orelha. Isso está mais para uma tunda de laço, igual àquelas que a gente leva quando é piá e deixa de fazer a lição de casa para ir jogar bola. De qualquer forma, mantive o título original. Sendo assim, espero que pelo menos a orelha tenha ficado bem vermelha.


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