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Segundo Ato: Tempos interessantes para a esquerda brasileira

O que está nascendo nas ruas? Em quatro atos
Por  Hânder Leal, no blog Brasil de Fato

As manifestações recentes não representam apenas a revolta de jovens estudantes, como os donos do poder ardilosamente tentam argumentar. O contingente que tem ocupado as ruas do país é composto por movimentos sociais legítimos, agentes de mudança sintomáticos de uma economia ocidental cada vez mais desindustrializada, com menos organização sindical e mais homogeneidade ideológica. É também a revolta de um povo que não encontra mais no trabalho uma fonte de reprodução e sustento suficientes para ingressar na classe média – me refiro à classe média no sentido verossímil do termo, não aos beneficiários das políticas de inclusão social, egressos das classes D e E; “nova classe média” que daquela herdou apenas a propensão ao consumo.

Um movimento que se pretenda vanguardista ou revolucionário não pode ter como bandeira nomes próprios – de presidentes, congressistas, do papa, seja lá de quem for. Nas próximas manifestações, os manifestantes devem levar para as ruas os nomes das próprias instituições que se encontram incompatíveis com as necessidades prementes do povo brasileiro. As instituições devem ser o alvo das revoltas populares; do contrário, só estaremos abrindo precedentes históricos para mais manifestações. Em tempos de ciclovias, se me permitem a analogia, seria como se estivéssemos apenas aumentando a força da pedalada, sem, entretanto, trocar a marcha da bicicleta. Uma hora a correia arrebenta, e não há mais bicicleta.  

Não é apenas por conta dos exageros e irregularidades nos gastos com a Copa do Mundo que o povo está saindo às ruas. Tampouco é por causa de 20 centavos que uma geração de brasileiros está saindo do Facebook e tomando as ruas. Fazem isso contra um plano de crescimento econômico que adota o investimento pesado na indústria automobilística “nacional” como único refúgio para disfarçar a pífia industrialização do país, mesmo que o custo disso seja o gargalo das infraestrutura urbana e de transportes. O povo está tomando as ruas porque falta ao Brasil um projeto nacional; um projeto nacional claramente desenvolvimentista que inclua a população a partir da inovação da base produtiva e não meramente pela ampliação do consumo de bens produzidos por corporações transnacionais.

Mesmo as políticas de inserção social implementadas pelo governo brasileiro na última década representam nada mais que as migalhas de um projeto econômico mediado pelo incremento no consumo sem, no entanto, passar pela inovação tecnológica da indústria nacional, passo importante que permitiria – e quiçá, um dia permitirá – a exportação de tecnologia “made in Brazil”, gerando excedentes e divisas necessárias à construção de um novo Estado desenvolvimentista. No embuste democrático espetacular, as migalhas recebem o nome de “bolsa” e servem mais para encher a boca da classe média reacionária do que os bolsos de quem as recebe. Mas qual o projeto nacional do Brasil hoje? No lugar do desenvolvimentismo nacional, o que houve foi um pacto do governo brasileiro com o grande capital internacional que resultou na subordinação da classe trabalhadora brasileira aos investidores estrangeiros. E não há sinal mais emblemático disso do que a própria Copa do Mundo. 

Por outro lado, de nada adianta exigirmos que os governantes façam milagres em um Estado institucionalmente estruturado para privilegiar os detentores do poder. Pode um país cuja economia está atrelada majoritariamente ao mesmo setor – commodities e sua oligarquia latifundiária – desde que se constituiu como nação construir um projeto nacional tendo como instrumento instituições nas quais a participação popular fica restrita ao voto? Não! Até hoje, o mito da democracia representativa serviu apenas ao triunfo de países ricos industrializados que fizeram sua revolução industrial há mais de duzentos anos e que praticam uma política externa imperialista. Esse, nitidamente, não é o caso do Brasil. E é bom que não seja. O povo brasileiro pode e merece muito mais do que isso.

Se por um lado as manifestações surgem a partir de demandas concretas, por outro, nenhum quadro de fatos pode ser menos salutar para a consolidação dos rumos políticos do país do que a redução de toda a amálgama de indignação popular a um conjunto de demandas que, por mais importantes que sejam, têm limitação temática. Assim, por mais que a melhoria dos serviços sociais, o planejamento urbano, o maior investimento em educação, os direitos das minorias (LGBT) e das maiorias (mulheres), a defesa do que sobrou de laico do Estado e da sociedade brasileiras, dentre outras bandeiras tradicionais da esquerda sejam importantes, há de se ir além; muito além da democracia liberal que o povo brasileiro acostumou-se a aceitar como único sistema de governo viável. Os movimentos recentes mostram que está chegando a hora de o povo brasileiro romper as barreiras econômicas e institucionais que sustentam o embuste democrático. Esse desafio está na ordem do dia e não há nada mais concreto do que isso. Mudar menos do que isso tudo é mudança alguma. Qualquer demanda inferior a essa terá o efeito final de apenas perpetuar o ciclo de descontentamento popular do cidadão brasileiro.

É preciso entender que o grande motivador de todas essas revoltas não é nenhum de seus sintomas, amplamente divulgados e debatidos. Esses sintomas são apenas os nomes que o espetáculo político-econômico-midiático adota para desviar a tomada de consciência popular. A fagulha social que incendeia o mundo e que se fez sentir com mais força no Brasil ultimamente aponta para o próprio despertar de um horizonte além da democracia liberal. Uma reforma institucional está na ordem do dia em nosso país. Uma reforma à esquerda, e não à direita, como alguns estão acreditando que será. 

Como já era de se esperar em um estágio avançado de implementação do sistema democrático de governo em uma nação com longo histórico de inserção internacional periférica, as bandeiras partidárias hegemônicas já não mais determinam projetos políticos diferenciados. Fica fácil perceber que todas elas são empunhadas em riste pelo sistema financeiro e pelas grandes corporações econômicas que, para lubrificar as engrenagens de suas máquinas de dominação e fazerem a classe política pagar o pato sozinha, ultimamente decidiram enganar o povo travestidos de anônimo hollywoodiano. E estão conseguindo enganar muita gente por aí. 

Aos cientistas políticos, por favor, parem de se questionar em vão sobre a qualidade da nossa democracia. O embuste democrático não é fenômeno exclusivo do Brasil. É apenas um efeito colateral do próprio estágio de crescimento econômico que o país vivencia. Crescimento econômico sem democratização da base produtiva, sem incentivo à pequena e micro empresa, sem investimento em tecnologia e inovação é fruto apenas da exploração do trabalho pelo capital. Isso não é desenvolvimento, por mais que se distribua renda por outros meios. É apenas o efeito sufocante da monopolização mundial da economia sobre os governos; basta ver a quantidade de manchetes sobre fusões de empresas. Candidato político que for contra essa maré não recebe financiamento de campanha, não ganha voto e não consegue penetrar nos estamentos que se consolidam no Brasil e no mundo.

Inconsciente disso, mesmo assim o povo brasileiro começa a rejeitar a morosidade e o desgaste de um sistema social em que o poder concentra-se não na política, mas na economia, estruturada a partir do nefasto princípio da escassez seletiva que, uma vez transmutado para as instituições políticas, torna-se o princípio base de organização e reprodução social em nosso tempo. Mesmo assim, aos poucos, as próprias políticas de inclusão social acabam tornando os brasileiros conscientes de que vivem em um dos países mais desiguais do mundo. Há espaço para a mudança; há um vazio político deixado pela centro-esquerda que a esquerda deve ocupar. A lentidão da história deve ser objeto do passado, restrito a seus manuais; a partir de agora, é a própria história que deve ser acelerada. Se esses não são tempos interessantes para a esquerda brasileira, então estamos vendo o metrô da história passar. 
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