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Sidarta terapêutico?

Por Sérgio Abranches

Ela era muito bonita e estava muito desesperada. Tinha os olhos inteligentes e tristes. Éramos colegas de classe e estávamos começando a ficar amigos.
Vou chamá-la de Isolda, como em Tristão e Isolda. Dificilmente seus pais lhe dariam este nome improvável, marcado pelo destino trágico da heroína da estória de Tristão, escrita em verso por Gottfried von Strassburg, em 1210 e celebrizada por Richard Wagner.

Ainda não havíamos completado o ciclo natural pelo qual se formam os nexos da verdadeira amizade – simpatia e confiança recíprocas que levam à intimidade e à cumplicidade. Um dia, no intervalo das aulas, uma amiga comum, ela sim boa amiga de ambos (vou chamá-la de Malu), contou-me que Isolda estava em depressão e lhe havia dito que iria se matar. Pediu-me que conversasse com ela. Achava que eu talvez fosse capaz de lhe dizer algo que a dissuadisse da ideia. Meus amigos imaginavam que eu sabia de tudo, não percebiam que, como Riobaldo, quase de nada sabia, apenas desconfiava de muita coisa.

Alguma autossuficiência exterior que pudesse exibir seria para disfarçar um ser que queimava em dúvidas; de todos divergia; e estava perdido na mais completa insatisfação. Esse buraco negro que tudo tragava e produzia insatisfação avassaladora talvez me compelisse a devorar os livros. Achava que essa insatisfação crônica, essa inquietude, essa raiva quase incontida do que via como descaminhos do mundo, do país; esse desconforto em família; esse desencanto com a maioria dos professores fossem um mal pessoal. Só muito depois descobri que esse era o sentimento de toda minha geração e, normalmente, de todo jovem. Uns o viviam com maior, outros com menor intensidade. Todavia, quase todos o sentiam de algum modo.

Mas, agora, era uma situação muito mais séria. Eu jamais havia conversado com alguém que depois tivesse se matado, menos ainda que estivesse sabidamente prestes a se matar. De tanto Malu insistir, prometi que conversaria com Isolda e tentaria acalmar um pouco suas inquietações.

O que estava consumindo Isolda não era náusea moral, era mal de amor. Ou de abandono e rejeição. Era uma personagem romântica, coisa rara naqueles tempos, sobretudo no meu grupo e, provavelmente, na minha geração. Ela consumia de paixão não correspondida, desesperava-se por ter sido abandonada pelo rapaz pelo qual estava perdidamente apaixonada. Pior ainda, ele, alguns anos mais velho, gostava de outra, com quem ia se casar. Depois descobriu-se que a garota havia engravidado. Eu certamente nada tinha a lhe dizer. Teria sido um conselheiro existencial inepto, diante de meu próprio e revoltoso oceano interno de dúvidas, o que dizer de conselhos sentimentais? Malu, porém, tinha certeza de que eu poderia fazer algo por ela. Tanto insistiu, que prometi procurá-la no final das aulas, quando quase sempre descíamos a pé e em grupo, em direção à universidade. O colégio onde estudávamos ficava a algumas centenas de metros da universidade, da qual aproveitávamos várias atividades extracurriculares.

Eu havia terminado de ler Sidarta, a fábula de um jovem indiano em busca do autoconhecimento, por Hermann Hesse. Ele era, também, a seu modo, insatisfeito e deslocado do mundo e enveredara por uma procura de vida inteira. Hesse falou muito fundamente a várias gerações. Hoje, é visto, injustamente, como um autor ultrapassado. A minha provavelmente foi a última geração que o leu com admiração e grande sentimento de afinidade. Há um momento, em que Sidarta pensa em se matar, desolado com o rumo que sua vida havia tomado. Mas termina por reencontrar o sentido de sua busca com o barqueiro Vasuveda, que havia chamado a atenção dele por sua sabedoria simples, logo no início da jornada. Sidarta, como eu naquela época, não acreditava em mestres. Por isso diz a Buda que nenhum ensinamento contém o segredo da experiência pessoal, que é único, entre centenas de milhares. – Vou seguir meu próprio caminho – diz – não para buscar outra doutrina, pois sei que não as há, mas para deixar todas as doutrinas e todos os professores e buscar meu objetivo sozinho, ou morrer.

Como eu me identificava com aquele jovem determinado na busca da autossuficiência! Mas, ao mesmo tempo, o que ele me dizia é que seria inútil eu tentar dizer algo que realmente fizesse sentido a Isolda. Ela havia perdido a autoestima, sentia-se indesejada e indesejável. Eu não teria argumento para aplacar sua dor e persuadi-la do valor da própria vida.

Foi com esse sentimento de inutilidade que a procurei para conversar. Trazia na bolsa o volume de Sidarta e na cabeça o turbilhão de sentimentos e ideias que a leitura dele me havia provocado. Eu o havia levado para reler trechos nas horas vagas, ou quando as aulas se tornassem chatas demais, para pensar mais sobre ele.

Conversamos um pouco, ela estava mesmo deprimida. Foi fácil conseguir fazer com que se abrisse e contasse, em lágrimas, o que sentia. Falei-lhe longamente da busca pessoal, de como cada experiência em si tem pouco valor e a soma das experiências adquire um valor inestimável e único. Era o que me acabara de dizer Hesse, por intermédio de Sidarta. Ela ouviu tudo, falou pouco, mas tive a sensação de que me olhou pedindo algo mais, uma explicação a mais que a livrasse do tormento e a convencesse a continuar a viver. Contei-lhe que havia terminado de ler Sidarta. Falei do diálogo magistral entre ele e seu amigo Govinda, no qual diz que o conhecimento é comunicável, mas a sabedoria não. Eu podia ter um pouquinho de conhecimento, mas certamente me faltava a sabedoria da experiência. E mesmo esta parece tola ao lhe ser transmitida por um sábio, diz Sidarta ao amigo. Talvez ela encontrasse respostas para suas dores e angústias no livro de Hermann Hesse. Não lhe disse que, terminada a leitura, eu havia ficado com mais perguntas que respostas. Dei-lhe meu exemplar. Ela aceitou e disse que o começaria a ler ainda naquela noite. Era uma sexta-feira, na segunda, me diria o que havia achado.

No começo da semana seguinte, disse-me que ainda lia Sidarta e estava encantada com o livro, agradeceu muito. Depois, não voltou às aulas. Perguntei a Malu por Isolda e ela me disse que a via com frequência, continuava deprimida e triste, mas já não falava em se matar. Estava se dando um tempo e ficaria algumas semanas sem ir à aula. Um mês depois, já próximo do final do ano, fui expulso do colégio. Malu mudou-se para São Paulo com a família e nunca mais tive notícias das duas. Fiquei sem saber se minha quase amiga havia se recuperado daquela depressão juvenil, que pode ter consequências tão finais. Muitas vezes essas depressões em jovens podem ser bem mais extremas que as adultas, embora sejam frequentemente negligenciadas.

Passados incontáveis natais, com essas lembranças perdidas nas brumas de um tempo remoto, encontrei-me com Isolda, por acaso, literalmente em um desvio na estrada. Viajávamos em um 4×4 para a Mantiqueira, chovia muito, a saída havia sido muito mais demorada que o esperado, porque o trânsito estava lento demais. Esse início era praticamente toda a parte do trajeto que faríamos no asfalto. Depois, tomaríamos estradas secundárias, cada vez mais para trilhas do que para estradas. Era o que buscávamos, muita lama e dificuldades de travessia. Mas queríamos iniciar o caminho mais difícil, ainda pela manhã, porque nele ficaríamos até quase o anoitecer, se tivéssemos sorte e habilidade. Decidimos dormir em uma pousada que, nos haviam dito, era muito aprazível. E era. Ao chegarmos, Isolda veio nos receber. Havia reconhecido meu nome, quando liguei para indagar se havia quarto vago para a noite. A pousada era de sua família. Eu a reconheci de imediato, enquanto caminhava até nós pelo estacionamento em frente à casa principal. Só então fiquei sabendo que não dera um fim trágico a sua vida, matando-se por amor como uma Isolda moderna.

Sidarta, passados muitos anos, voltou às margens do rio que atravessara no início e no qual pretendia se matar, porque julgava sua existência dissoluta e perdida. Reencontrou Vasuveda, o barqueiro e com ele aprendeu a ouvir as vozes do rio. Elas lhe mostraram a passagem para a autosuficiência que buscava.

Isolda parecia ter encontrado refúgio na serra, em meio à Mata Atlântica de altitude. Seus olhos não mostravam a depressão de quando a conheci. Continuava viva e interessante. Mantinha os traços da beleza da juventude. Estava só, mas parecia em paz consigo mesma. Não lhe perguntei se Sidarta a havia salvo, nem tive tempo ou oportunidade para saber de sua vida entre nossos dois encontros. Perguntei-lhe apenas como havia ido parar ali. Contou-me que decidira recentemente mudar-se para a pousada, onde havia muita calma e podia ler bastante.

Tenho certeza que sim. Conheço bem o efeito calmante dessa mata. Da música de seus pássaros numerosos e diversos. Dos seus vários tons de verde. E de suas águas limpas. É mesmo um ambiente muito propício para ler e refletir. Quem sabe ela tenha encontrado lá sua síntese pessoal, singular  e secreta, única entre centenas de milhares, como diz Hesse.

Minha lembrança desse momento em que nossas vidas tiveram breve interseção, no início da juventude, é particular. Talvez ela nem se lembrasse dessa passagem de sua existência se lhe perguntasse por ela. Para mim, ficou associada à minha intocada admiração pela literatura de Hermann Hesse e ao impacto da primeira leitura de Sidarta.
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