em que os antigos vínculos não mais se sustentam, tudo que interessa é você: você pode ser o que quiser; você escolhe sua vida, seu ambiente, até mesmo sua aparência e suas emoções. ... As velhas hierarquias de proteção e dependência não existem mais, só existem contratos abertos, rescindidos livremente. O mercado, que há muito tempo se expandiu para incluir as relações de produção, agora se expandiu para abarcar todos os relacionamentos.
"A cultura do sacrifício está morta", declarou bruscamente Gilles Lipovetsky no posfácio de 1993 a seu estudo pioneiro, de dez anos antes, sobre o individualismo contemporâneo. "Deixamos de nos reconhecer na obrigação de viver em nome de qualquer coisa que não nós mesmos."
Não que tenhamos ficado surdos às nossas preocupações com os infortúnios de outras pessoas, ou com o triste estado do planeta, nem que tenhamos deixado de ser sinceros sobre tais ansiedades.
Também não deixamos de declarar nossa disposição de agir em defesa dos oprimidos, assim como na proteção do planeta que eles compartilham conosco, nem de atuar (ao menos ocasionalmente) a partir dessas declarações.
O oposto parece ser o caso: a ascensão espetacular da auto-referencialidade egoística, paradoxalmente, caminha de par com uma crescente sensibilidade à miséria humana, a execração da violência, dor e sofrimento que afligem o mais distante dos estranhos, e as erupções regulares de caridade focalizada (terapêutica).
Mas, como Lipovetsky corretamente observa, esses impulsos morais e essas explosões de magnanimidade são casos de "moralidade indolor", moralidade privada de obrigações e sanções executivas, "adaptada à prioridade do Ego". Quando se trata de agir "em nome de outra coisa que não de si mesmos", as paixões, o bem-estar e a saúde física do Ego tendem a ser tanto as considerações preliminares quanto as derradeiras. Também tendem a estabelecer os limites do caminho que estamos preparados para percorrer em nossa disposição de ajudar.
Via de regra, as manifestações de devoção àquele "algo (ou alguém) que não nós mesmos", ainda que sinceras, apaixonadas e intensas, não chegam ao auto-sacrifício.
Por exemplo, a dedicação à causa verde dificilmente chega a ponto de se adotar um estilo de vida ascético, ou mesmo uma forma parcial de abnegação. Com efeito, longe de estarmos prontos a renunciar a um estilo de vida caracterizado pela tolerância consumista, frequentemente relutaremos em aceitar o menor inconveniente pessoal.
A força-motriz de nossa indignação tende a ser o desejo de um consumo superior, mais protegido e mais seguro. No resumo de Lipovetsky, "o individualismo disciplinar e militante, heroico e moralizante" deu lugar ao "individualismo à la carte", "hedonista e psicológico", que "faz das realizações íntimas o propósito principal da existência".
Parece que não sentimos mais que temos uma tarefa ou missão a desempenhar no planeta, e aparentemente não há nenhum legado que nos sintamos obrigados a preservar, por termos sido nomeados seus guardiões.
A preocupação com a forma como o mundo é administrado deu lugar à preocupação com a “auto-administração”. Não é a situação do mundo, juntamente com seus habitantes, que tende a nos incomodar e a nos deixar preocupados, mas sim aquilo que é de fato um produto final da reciclagem de seus ultrajes, futilidades e injustiças em desconfortos espirituais e inconstâncias emocionais que prejudicam o equilíbrio psicológico e a paz de espírito do indivíduo interessado.
Isso pode ser, como Christopher Lasch foi um dos primeiros a observar e articular, o resultado de transformar "queixas coletivas em problemas pessoais suscetíveis à intervenção terapêutica".
"Os novos narcisistas", como Lasch memoravelmente chamou os "homens psicológicos" capazes de perceber, esmiuçar e avaliar a condição do planeta unicamente através do prisma dos problemas pessoais, são "assombrados não pela culpa, mas pela ansiedade". Ao recordarem suas experiências "interiores", eles "procuram não fornecer um relato objetivo de um fragmento representativo da realidade, mas seduzir outros" a lhes darem "sua atenção, aplauso ou simpatia", e assim sustentar seu inseguro senso de eu [self]. A vida pessoal tornou-se parecida com a guerra e tão cheia de estresse quanto o próprio mercado. O coquetel "reduz a sociabilidade ao combate social".
Sem muito mais em que basear a ansiada segurança de sua posição social, ressoando como autoconfiança e autoestima, exceto os ativos pessoais de propriedade pessoal ou a serem adquiridos pessoalmente, não admira que as demandas por reconhecimento, como diz Jean-Claude Kaufmann, "inundem a sociedade". "Todo mundo busca ansiosamente a aprovação, a admiração ou o amor nos olhos dos outros." E observemos que as bases para a autoestima fornecidas pela "aprovação e admiração" de outros são notoriamente frágeis. Como se sabe, os olhos se movem, e as coisas sobre as quais eles recaem ou pelas quais deslizam são conhecidas por sua propensão a virar e revirar de maneiras impossíveis de prever, de modo que o impulso e compulsão de "observar atentamente" na verdade nunca cessam. O calor da vigilância atual pode muito bem transformar a aprovação e aclamação de ontem na condenação e no ridículo de amanhã.
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