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Tensões entre Abertura Democrática e Cultura

A culturaé explicada como uma lente através da qual o homem observa o mundo.
Causas eefeitos são compreendidos de forma diferente, por aqueles que possuem culturas diferentes e, por conseguinte, isso afeta a própria lógica social. O sistema cultural é dinâmico e sempre está mudando, em decorrência da vivência de novas experiências e pela agregação de novos conhecimentos.

Para Habermas (2003, ps. 130-131) os valores culturais transcendem os fatos a as ações. Essas últimas são condensadas nas síndromes bibliográficas e históricas das orientações dos valores, sob os quais os sujeitos podem discernir entre o que é viver com qualidade e bem viver e simplesmente sobreviver. Assim, esses valores marcam a identidade de grupos e indivíduos que constituem uma parte que integra a respectiva cultura. Por essas razões, as questões morais que movem as condutas individuais estão intrinsecamente relacionadas às esferas práticas do bem viver, entendido também como autorrealização. Por isso Habermas sustenta a intrínseca relação entre a cultura e a democracia.

Por outro lado, quando se tenta estabelecer a relação entre democracia e desenvolvimento, percebe-se que isso é uma coisa instável e difícil, pois a primeira pode aniquilar a segunda e a segunda pode sufocar o desenvolvimento. A necessidade de desenvolvimento gera fortes tensões e provoca, de imediato, conflito e não paz, em razão, principalmente, do aumento da necessidade de concretização de justiça social eda própria restrição ao consumir, que geram revolta nos seios populares devido ao aumento da expectativa de melhoras condições de vida (FERREIRA FL.,1972, p. 44). A conscientização e as mobilizações populares, essenciais para o alcance do desenvolvimento, agravam o quadro de insatisfação.

A inexistência de serviços públicos e a fragilidade de políticas econômicas e sociais que busquem a emancipação da cidadania colocam a comunidade em um papel fundamental para reivindicação e suprimento dos referidos serviços (PINHEIRO, 1998, p. 108). Bohman (2000, p. 57) foi além e esclareceu que o pluralismo cultural, a acentuação das desigualdades e a complexidade social representam, na atualidade, desafios à democracia, pois possibilitam a produção de movimentos populares antiinstitucionais e antidemocráticos, como organizações criminosas emilícias, que só podem ser superadas de forma eficiente caso o Estado reaja, criando novos fóruns e promovendo reformas institucionais em que os cidadãos deliberem juntos e possam fazer uso da própria razão nas mais diversas formas.

 Biddle (1969, p. 144) explicou que a ausência de senso comunitário gera a violência local, que reflete a insatisfação das minorias em relação à autoridade e a outras frustrações da população, como desemprego, preconceito, falta de acesso ao ensino básico. Por isso, no planejamento estatal em âmbito microrregional, é importante buscar a compreensão dos fatores de violência urbana e de propostas de solução, para entender quando os indivíduos perderam – ou se algum dia tiveram – sentido de comunidade. O sentimento de não pertencer ao meio, de não ser desejado e de não compartilhar uma identidade cultural comum retratam a própria perda da dignidade
humana. As experiências comunitárias e o fortalecimento das unidades familiares mostram-se, por isso, essenciais para o processo construtivo do desenvolvimento.

Isso ocorre porque a questão democrática, envolvendo a cidadania, passa pelo “mundo da vida” conforme Teoria da Comunicação. Habermas (1997, ps. 111-112) explicou que esse mundo da vida é a face da cultura, e é formado por uma rede de açõescomunicativas, difundidas em espaços sociais no decurso da história. As ações comunicativas, por sua vez, não são apenas alimentadas pelas tradições culturais, mas também dependem da identidade dos indivíduos socializados, que são aqueles que conseguiram se afirmar na qualidade de sujeitos de direitos, que encontram condições de apoio e de reconhecimento recíproco no meio, articulado em uma ordem legítima. Daí se conclui que a prática comunicativa cotidiana nada mais é do que um jogo entre reprodução cultural, integração social e socialização, em que a linguagem do direito pode intervir como transformadora de realidade.

E aqui se assenta a proposta dialógica da Constituição Federal e da legislação infraconstitucional, verificável pelos inúmeros instrumentos legais que incentivam e possibilitam a participação direta da sociedade nas decisões públicas, como já esclarecemos. A mudança de foco do Direito de instrumento de controle social para o Direito de mudança social. Contudo, quando se passa à questão da eficácia dessas ferramentas normativas, de maturidade e de valores norteadores, nota-se a importância da cultura.

Miranda (2007, ps. 255-256) preocupou-se em esclarecer algo que parece óbvio:
a culturanão se confunde com a política, entretanto, em razão da sua relevância coletiva, os poderes públicos nunca lhe foram indiferentes. A posição do Estado perante os fenômenos culturais varia de acordo com épocas e regimes políticos, ambos diretamente afetados por políticas culturais. O critério principal dessa correlação é a liberdade (regimes democráticos, autoritários e totalitários), mas ela não é o único, pois também é necessário considerar as relaçõeseconômicas (regimes de economia de mercado e de direção central total), estrutura da administração pública (regimes centralizados e descentralizados), e mais especificamente dentro da cultura os aspectos religiosos (regimes de união entre Estado e religião e laicistas).

Quando se adota essa perspectiva, compreende-se por que as experiências de arranjos participativos, provocados pelas novas aberturas de espaços deliberativos, estão causando profundas perturbações no modo como as decisões são tradicionalmente tomadas no Brasil. Na verdade, verifica-se uma tensão entre a permanência dos traços característicos de cultura política – como o centralismo e o clientelismo – e a possibilidade de superação e redução desses efeitos, em decorrência da maior visibilidade para o funcionamento da Administração, propiciada pela inclusão da sociedade civil nos processos decisórios (FERRAZ, 2009, p. 134).

A democracia representativa é marcada pelo jogo político. A ansiedade pelo desenvolvimento imediato alimenta a manipulação da população e cria uma simbiose paradoxal entre os agentes detentores do poder. Eagleton (2005, ps. 83-84) alertou que a alta cultura pode servir como forma de persuasão moral e ferramenta de imposição de poder, à medida que permite que uma ordem governante molde para si mesma uma identidade formal e inflexível, imputada como uma arma ideológica frente a outras culturas, para buscar uma tirania do consenso.

 O alcance ideal do consenso, inclusive, é alvo de críticas não só de Eagleton mas também de cientistas políticos, e remontam uma discussão filosófica traçada inicialmente por Rousseau e Montesquieu. O primeiro defendia o monismo social, em que a pluralidade de grupos deveria se sujeitar a um só grupo, o Estado, detentor do poder democrático verificado pela vontade geral, contrapondo-se à teoria do pluralismo social desenvolvida por Montesquieu, que serve de contrapeso à força da organização estatal, em que corps intermédiaires precisam ser fortalecidos e mantidos fora do controle do Estado, a fim de permitir ao indivíduo, à minoria, resistir à prepotência e à injustiça da maioria (FERREIRA FL, 1972, ps. 86-87).

De um ponto de vista mais pragmático, mesmo quando a maioria apresenta-se politicamente mais forte, o poder político só é eficaz na medida em que o sistema político se mantenha coeso. Indubitavelmente, a necessidade de ações comuns na vida em sociedade exige uma tomada de decisão que proteja o princípio da igualdade ereconheça a capacidade dos cidadãos em se posicionar autonomamente; o critério majoritário é o que mais se aproxima desse propósito (WALDRON, 2003, p. 160). Ora, pensar no homem como sujeito de direitos exige liberdade e respeito ao princípio da autonomia da vontade, sob pena de se consolidar a manipulação e a tirania do consenso tratadas por Eagleton.

Essa tese vai ao encontro da proposta teórica de Rawls (2008, p. 560) para quem uma sociedade bem ordenada, efetivada por uma concepção pública de justiça, que valorize o indivíduo através da afirmação de sua autonomia e do incentivo à reflexão objetiva sobre seus desígnios e opiniões, promove o bem de seus membros.

A consistência jurídica e a adequação social do direito dependem do princípio da igualdade, o que significa que diferenças econômicas, educacionais, religiosas, políticas, culturais, referentes ao saber, mesmo que legítimas nos respectivos campos do contexto social, não devem transitar imediatamente para o direito, sobretudo, se forem assimétricas (NEVES, 2009, p. 66).

Isso permite estabelecer um diálogo e, por conseguinte, maior eficácia do planejamento público, afinal, a legitimação da atuação estatal envolve a necessidade do sistema político institucionalizar formas e procedimentos capazes de regular, disciplinar e reprimir conflitos, além de minimizar antagonismos e tensõesentre indivíduos.

Entretanto, a implantação de uma democracia gerencial, a ser realizada através de um planejamento comunicativo, para a realização de um “sistema de ações concretas” (GUERRA, 2005, ps. 348-349), exige que alguns pressupostos sejam observados, dentre eles, que o sujeito deve ser pensado como ator capaz de escolhas racionais. Além disso, deve-se manter a perspectiva de que as estruturas não nascem espontaneamente, elas são produzidas pelos atores; já as transformações, que são obtidas através de objetivos coletivamente definidos, ocorrem em negociações compostas de interações desiguais, conforme o poder econômico-social dos envolvidos. Esses são fatores importantes a serem considerados pelo Estado no momento da mediação.

Por isso reitera-se que o planejamento público também está intrinsecamente relacionado à cultura, pois esta reflete os valores sociais, devendo ser inserida não só como objeto, mas como instrumento para a construção do planejamento na busca do desenvolvimento nas comunidades. Diante dessa percepção, é possível ratificar que para a construção de uma ordem desenvolvida não é suficiente a elaboração do planejamento por um grupo de técnicos, ou seja, um grupo isolado de especialistas; isso requer o envolvimento de toda comunidade.

Percebe-se claramente a relação entre desenvolvimento, democracia e cultura. A institucionalização de uma democracia real deve ser feita a partir da conjuntura, de acordo com o caráter e as tradições de cada povo (FERREIRA FL.,1972, p. 58), buscando realizar as adaptações institucionais às peculiaridades e à formação cultural dos indivíduos, sob pena de distorções e de haver unicamente uma democracia formal.

Reitera-se, portanto, a proposta de planejamento comunicativo habersiana,  subsidiada na deliberação social.

É possível definir cultura política como aquela que representa um conjunto de crenças, de valores e de atitudes que orientam o comportamento político da sociedade.
Nesses termos, Mahaniah (1994, p. 148) defende que para haver um regime verdadeiramente democrático, a cultura política precisa estar arraigada aos seguintes elementos: (1) aceitação da lei como reguladora e limitadora do poder estatal e como instrumento hábil para a solução de conflitos individuais e coletivos; (2) prática do associativismo para formação de grupos de interesses autônomos ao do Estado, que defendam a tolerância, a aceitação e respeitem opiniões; (3) garantia dos direitos individuais; (4) obrigação de cada indivíduo em participar da gestão pública e de práticas políticas, o que envolve capacidade eleitoral ativa e passiva. Da análise desses elementos, percebe-se que a democracia relaciona-se à liberdade e a um mínimo de espaços reais para discussão (NEVES, 2009, p. 57).


Também é preciso discernir que além de liberdade política é necessário haver liberdade econômica, pois onde não há liberdade de consumo, inexiste a liberdade básica. Souza Barros (1977, ps. 216-217) apontou que a democracia não pode deixar de se apoiar no todo complexo social, e não se concebe mais pensar em democracia apenas em termos políticos, pois os filtros econômicos cerceiam direitos. Além disso, a liberdade política só é alcançada por meio da garantia de direitos sociais fundamentais, face ao desenvolvimento qualitativo, conforme explicado anteriormente.

Nesse diapasão, segundo Alexy (1993, p. 487), os direitos sociais formam um conjunto de direitos sem os quais as liberdades públicas se transformariam em meras fórmulas vazias, pois aqueles exigem uma forma atuante do Estado, a fim de promover a igualdade dos hipossuficientes. Dessa proposta, e mantendo o foco no Estado Democrático de Direito, consolida-se na doutrina a ideia de direitos fundamentais operacionais e condicionantes, onde os primeiros representam direitos de liberdade eexercício de poder político, inerentes à democracia, e os últimos, um aspecto indireto desta. O conjunto desses direitos, com relação ao ambiente estatal, desempenha o papel de subsistemas constitucionais, em que a função dos direitos condicionantes é obter dos grupos sociais e econômicos adesão ao ordenamento estatal vigente, através dos direitos operacionais, ou seja, permitir que esses grupos participem do jogo político, sustentando a democracia (COUTO, 2006, p. 107). Isso corrobora a preocupação da proteção da igualdade nos processos deliberativos tratados anteriormente neste texto.

Pode-se constatar que o caminho para a concretização de direitos, ou seja, para o alcance do próprio desenvolvimento, passa pela viabilidade de cobrança e de fiscalização da mobilização das comunidades, por meio de mecanismos legais que possibilitem o verdadeiro capital político e o conhecimento de como funciona o sistema social, este entendido como capital educacional agregado, bem como as predisposições da cultura, compreendida como capital cultural agregado, e as efetivas possibilidades da civilidade, que é o capital tecnológico agregado (PUGLIESI, 2009, p. 83). Dentro do capital tecnológico estão os novos recursos, como a comunicação em rede, a internet e todas as ferramentas que possibilitam a publicidade dos atos públicos e permitem maior divulgação e mobilização dos atores.

Essa cultura social, segundo Amartya Sem (2010, p. 207), interfere na instrumentalidade e no papel construtivo da democracia, que cria oportunidades de melhoras qualitativas nos índices de desenvolvimento humano. Ratificando esse entendimento, o ONU-Habitat (2011, p. 5), relatório publicado no Brasil pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), constatou que as cidades podem ser abertas ou fechadas à capacidade de seus habitantes de terem acesso às decisões e
participarem dos diferentes tipos de interação e troca. Isso traz profundas repercussões ao meio urbano, que pode tornar-se um lugar de inclusão e de participação, ou, ao revés, de exclusão e de marginalização.

Portanto, para o planejamento e para a construção de espaços democráticos é necessário descobrir mecanismos limitadores e lançar uma proposta de reação inteligente a fim de superá-lo (LIBÂNIO,1985, p. 48) e um bom caminho para isso é a aquisição de conhecimentos e a descoberta, pelos indivíduos, da própria realidade.

Castoriadis (1992, p. 12) destacou que espaços realmente públicos dependem da tomada de consciência do fato de que a comunidade é parte de cada indivíduo que faz parte dela e o destino da primeira pode ser definido através do que cada indivíduo pensa, faz e decide. Isso é educação cidadã, ou seja, a participação na vida pública, a qual representa a cultura em si.

Por fim, lembramos que, como instrumento de desenvolvimento, o planejamento público legítimo exige um compromisso público do Estado para romper os círculos viciosos de exclusão social, o qual deve partir da cultura do povo, para integrar os indivíduos e as metas de desenvolvimento traçadas, e assim consolidar a democracia participativa e verdadeiramente legítima, conforme os valores constitucionais brasileiros.

Páginas 416 à 421 
Autor: Aline Virgínia Medeiros Nelson e Sérgio Alexandre de Moraes Braga Junior

Artigo Completo: 
application/pdf iconDemocracia e cultura no planejamento do desenvolvimento urbano
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