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Criminalidade e medo, como frutos da globalização


Pode-se dizer que os esforços na demanda de segurança não evitaram uma variedade moderna de insegurança marcada pela suspeita de motivos malévolos da parte de certos homens e mulheres específicos e a dificuldade de construir uma camaradagem sólida, durável e confiável. Ainda para Castel este quadro deriva da substituição de uma sociedade protegida por nexos éticos de solidariedade e comunitarismo, nos quadros dos “trinta anos gloriosos”, por uma sociedade privilegiando o indivíduo, exacerbando a fragilidade crônica dos vínculos humanos e os seus temores. Cria-se, com isso, um medo de todos em relação a todos, levando a ações defensivas no cotidiano. Hoje, pensa-se menos em segurança, isto é, em autoconfiança e auto-segurança do que em proteção, isto é, em abrigar-se das ameaças à própria pessoa.

Para Bauman, a segurança foi minada com a fragilização dos mecanismos institucionais apoiados e garantidos pelo Estado, com a falência das políticas que compuseram o Estado de Bem-Estar Social. Neste quadro houve uma ascensão dos chamados mercados ou poderes econômicos globais, fazendo com que o Estado permita que o mercado penetre na antiga lógica econômica e social que definiam sociedades reguladas e relativamente estáveis pelas políticas macroeconômicas internas e uma relativa autonomia na sua condução, num quadro mundial ordenado pelos instrumentos criados logo após a guerra. A desregulamentação das forças do mercado e a submissão do Estado à globalização negativa (globalização dos negócios, do crime e do terrorismo) não foi acompanhada pela globalização das instituições políticas e jurídicas capazes de controlá-la.

O resultado é uma fragilidade ímpar dos vínculos humanos, lealdades comunais frágeis, debilidade de compromissos e solidariedades, sobrecarregando as tarefas relacionadas ao estabelecimento, à manutenção e à operação diária do estado social, levando a uma crise das contas públicas e ao enfraquecimento da rede de proteção dos direitos sociais. Esta é uma lógica mercantil na medida em que o mercado prospera nas condições de insegurança, aproveitando os medos e o sentimento de desamparo dos seres humanos. O desmantelamento do estado social, dos sindicatos e outros instrumentos de barganha coletiva fizeram os indivíduos procurarem soluções individuais para problemas socialmente produzidos, de modo inadequado e ineficaz. Há uma privatização dos problemas em um mundo cada vez mais incerto e imprevisível e, assim, perigoso. Há um sentimento de liberdade sem segurança, tão perturbadora e pavorosa quanto a segurança sem liberdade.

Este é um quadro de “temores existenciais” que solapam a confiança dos indivíduos na medida em que se fragilizam os empregos e as empresas que os oferecem, nossos parceiros e nossas redes de amizade, a posição que ocupamos na sociedade mais ampla e a autoconfiança. O “progresso” se torna ameaçador e não uma manifestação de otimismo e expectativa de felicidade. O medo é o da exclusão, ou seja, de se tornar um dejeto do progresso. Tudo isso gera um conjunto de atividades que reafirmam a nossa debilidade e limitação diante da desordem, quando nos concentramos nas poucas coisas que podemos fazer para prevenir perigos, como buscar exorcizar o espectro da pressão alta, do alto nível de colesterol, do estresse ou da obesidade.

Também o crime e os perigos a ele relacionados recebem um peso e uma atenção desproporcional, sendo exposto ao público como fruto de “mendigos reincidentes na impertinência, refugiados em deslocamento, imigrantes a serem expulsos, prostitutas nas calçadas e outros tipos de dejetos sociais que povoam as ruas das metrópoles para o desgosto das “pessoas decentes”. Por esse motivo a batalha contra o crime é apresentada como um “excitante espetáculo midiático-burocrático””, como sugere a análise de Loïc Wacquant, retomada por Bauman. Para este a globalização é um processo parasitário e predatório que se alimenta da energia extraída dos corpos dos Estados-nação e outros meios de proteção de que seus súditos já possuíram no passado. Estes Estados estão perdendo sua influência sobre o curso da história na visão de Jacques Attali ou, como sugere Richard Rorty, “o fato central da globalização é que a situação econômica dos cidadãos dos Estados-nação saiu do controle das leis do Estado”.

Ainda para Rorty, a ausência de uma comunidade global organizada politicamente faz com que os muito ricos possam operar cuidando apenas dos seus interesses, com uma camada de intelectuais que participam de conferências internacionais dedicadas a avaliar os danos causados pelos muito ricos. Além desses grupos cosmopolitas há também um grupo social global composto de traficantes de drogas, terroristas e outros criminosos, bem como uma camada de intelectuais que celebram em todo o mundo o poder da nova “superclasse global”, cuja mensagem corresponde às vantagens do neoliberalismo para todo o mundo. O neoliberalismo reforça o poder dos mercados desregulamentados introduzindo-se em todos os domínios da vida humana inclusive os serviços sociais e previdenciários do Estado de Bem-Estar. Ele tem uma visão dos mercados individualista, não como estruturas históricas e sociais construídas pacientemente.

Dessa forma, a sociedade deixa de ser protegida pelo Estado de maneira adequada expondo-se a forças que ele não controla mais nem espera recapturar. A contrapartida dessa situação é a substituição do Estado social por um Estado prisional, crescendo a população carcerária na medida em que se focam o crime e os perigos que ameaçam a segurança corporal dos indivíduos e as propriedades de uma maneira mais rigorosa, ligada ao sentimento de vulnerabilidade social, decorrente da substituição da solidariedade por uma precária autoconfiança individual. Cria-se um excesso de cuidado voltado para proteção em lugar da segurança. Por outro lado esse Estado da proteção social não é particularmente amigo da democracia uma vez que não se baseia na fé que o povo tem no futuro e na confiança otimista em sua capacidade de agir. Cria-se assim um perigo para um Estado baseado na defesa da lei e da ordem e da democracia moderna. Há uma “inclinação totalitária” no Estado líquido-moderno.

Nessa situação difunde-se uma ignorância de que a ameaça paira sobre as pessoas comuns e do que deve ser feito diante da incerteza ou do medo. Este é precisamente o medo líquido pós-moderno. Ele cria uma visão interior de mundo marcada pela insegurança e vulnerabilidade rotineiras, mesmo na ausência de uma ameaça genuína. Os medos são sentidos de forma ubíqua, podendo vir de qualquer canto, dos lares, das ruas escuras, das telas dos televisores, dos locais de trabalho, do metrô e de catástrofes naturais ou agressões como crimes violentos, poluição da água e do ar, desemprego, atrocidades terroristas e assim por diante. Para Bauman, esse quadro está intimamente ligado à globalização negativa, à crise do Estado social e ao neoliberalismo. A luta contra o medo passou a ser tarefa da vida inteira, com os perigos considerados companhias permanentes da vida humana.

Nessas condições vive-se com uma percepção de “riscos” ou perigos cuja probabilidade acreditamos poder calcular, embora esse cálculo seja apenas o da probabilidade de que as coisas dêem errado sem que possam ser mais exatamente previstas, e a humanidade vive entre icebergs, financeiro, nuclear, ecológico, social, terrorista ou o do fundamentalismo religioso ou, ainda o da implosão da civilização que se observa com a militarização do Oriente Médio ou a visita do furacão Katrina a Nova Orleans. Essas observações derivam de uma leitura que nosso autor faz de Jacques Attali, indicando que o incompreensível virou rotina com a lei desaparecendo de vista e com o recolhimento da nossa antiga civilização. Acompanhando os reality shows, temos a sensação de uma exclusão iminente e inevitável. O Big Brother é uma metáfora nua de nossa vida.

Para enfrentar esses medos somos frágeis, pois não entendemos sua origem e sua lógica, faltam-nos habilidades para agir nem concebermos quais seriam essas habilidades. Os medos não fazem sentido e devem ser enfrentados cada vez mais individualmente com escassos e inadequados recursos para maioria da população.

Fragmentos do estudo:
Sobre o “Medo Líquido”, de Zygmunt Bauman;  Igor Zanoni Constant Carneiro Leão e Demian Castro, páginas 3,4,5.

No link:
Medo Líquido”, de Zygmunt Bauman - Universidade Federal do Paraná
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