O professor de filosofia política Marcos Nobre, 48, assistiu às manifestações populares de junho no Brasil como uma “erupção democrática” surpreendente pela qual, paradoxalmente, ele esperava há muito tempo.
Para o pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), não há dúvidas de que as “revoltas de junho” - termo que prefere - foram uma resposta da sociedade a um sistema político amorfo, sem forças reais de situação ou oposição, incapaz de responder às demandas de representação e de mudança no Brasil. Não à toa, ele diz, um dos motes dos protestos foi a rejeição dos partidos.
A tese de Nobre se baseia em sua leitura da transição política brasileira pós-redemocratização, de 1979 para cá. Do grande “acordão” feito para chegar à democracia chegou-se ao “acordão” da Constituinte. Depois do choque com a queda de Fernando Collor, em 1992, foi a vez do protagonismo do PMDB como grande fiador da governabilidade – quando se instala de vez o que ele chama de “pemedebismo”. No segundo governo Lula (2007-2011), e após a crise do “mensalão”, o PT vira administrador do “condomínio pemedebista”, incorpora o “acordão”. É nesse momento, diz o professor da Unicamp, que o sistema deixa de ser polarizado e produz o mal-estar que foi às ruas.
Foram essas ideias que Nobre levou para “Choque de Democracia – Razões da Revolta”, ensaio que inaugurou, em junho, o selo de "instant e-books" (obras sobre temas "do momento", lançados só em versão eletrônica) da editora Companhia das Letras. A obra, produzida em dez dias, está desde então na lista dos mais vendidos do gênero.
Na entrevista abaixo, Nobre discute o papel dos jovens e da educação política que tiveram nas revoltas e é otimista sobre os resultados futuros do fenômeno.
Carta na Escola: Qual é o papel dos jovens nas “revoltas de junho”?
Marcos Nobre: O papel da juventude é de vanguarda. Não tinha só jovens nas ruas, mas eles foram vanguarda em vários sentidos. Procurando novas maneiras de protestar, aceitando diferenças dentro da própria juventude e ao começar a discutir diferenças políticas, o que não era uma pauta. O fato de a juventude dizer que política é importante muda tudo. Alguém que cresceu depois da década de 1990 não sabe o que é inflação ou debate político polarizado. Essa geração tem esse lado de não ter experimentado nada: nem a ditadura, nem a inflação. Mas tem uma vivência de certa forma de vida democrática dentro da internet e das redes que é extraordinária.
CE: No livro, o senhor fala que essa geração não teve “formação política substantiva”. Por quê?
MN: Esses jovens não tiveram educação política formal. As pessoas que viveram no governo FHC sabem o que é viver num sistema polarizado. Tinha um peemedebismo lá no meio, mas tinha situação e oposição, embates políticos entre projetos diferentes. A partir do segundo mandato de Lula, isso acabou. Quando você integra o PT dentro desse acordão, fechou, fica sem saída. Não tem mais para onde olhar. Nas “revoltas de junho”, estourou um acordão no sistema, que era de blindagem contra a sociedade. E, quando estoura, é desorganizado. Essa juventude que não viu o sistema polarizado tem que fazer a sua própria organização alternativa. E, ao fazer isso, eles vão influenciar o sistema político. Pode ter certeza que o panorama partidário brasileiro vai mudar. A questão é a velocidade. Não vai dar tempo para 2014, mas para a Marina Silva, sim, ela percebeu antes – o partido dela se chama Rede. Você tem um movimento muito forte por candidatura avulsa. Não só junho de 2013 não acabou – ele continua – como ele vai mudar o cenário, inclusive partidário.
CE: Ainda que o discurso das ruas seja “contra os partidos”?
MN: Na verdade, se a minha interpretação for plausível, essa negação (dos partidos) é muito razoável. Se, de fato, você tem um sistema político que não é polarizado, é porque todos os partidos são iguais. Essas pessoas não estão erradas. Essa foi a experiência que elas tiveram sobre o que é política. Se as pessoas começam a conseguir reconhecer nos partidos políticas de fato e, sobretudo, polarizações, aí muda de figura, que é o que acho que vai acontecer. Siglas vão desaparecer, trocar de nome.
CE: Há críticas ao discurso das manifestações, que refletiriam um ambiente consumista e individualista.
MN: Se o sistema político não dá baliza, então você faz sua formação política na rede, no confronto de opiniões, de alguma maneira, isso tem que se cristalizar em alguns nós. O seu parâmetro não pode ser o do progressismo da década de 80, não poder ser o pemedebismo dos anos 90 e 2000. Você não tem palavras de ordem estabelecidas, as velhas não te servem. Então há que inventar novas. Por que os cartazes foram tão importantes? Porque foram tentativas de novas palavras de ordem. Quando você não tem referência, você vai buscar na sua vida mais imediata. Vi muita gente falando mal dos que cantavam "sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor", do futebol. Mas as pessoas fizeram coisas incríveis, que eram pegar palavras de ordem antigas e transformar. O meu preferido é "o povo unido é gente pra caralho", que é maneira de dizer "estamos putos". Essa coisa de "povo unido", do jeito que vocês falavam, tudo organizadinho com bandeira e em fila, não serve. Não é assim que a gente se funciona nem vai funcionar. Essa história de que as pessoas são consumistas, individualistas é uma bobagem. Elas só estão inventando uma nova forma de fazer política. O problema dessas interpretações que tacham o movimento de alienado, individualista ou comunista estão falando e uma política que era praticada até os anos 90. Não existe mais isso. Tivemos uma mostra patética das centrais sindicais, com as manifestações em julho, tentando desesperadamente dizer "estamos vivos".
CE: Como avalia a resposta do sistema político às revoltas até agora?
MN: A primeira coisa interessante é que aquilo que o sistema político viu como bagunça entrou no sistema político. As pessoas perguntam: em que isso vai dar? Já deu. Primeiro: mostrou uma cultura política no País em descompasso com o sistema político. Os desorganizados da rua estão mais avançados que o sistema político. Segundo: chacoalhou o sistema. Terceiro: o sistema político vai ter de se reorganizar, não para responder completamente às ruas, mas para abrir canais de comunicação, nos partidos e no próprio sistema.
CE: Enquanto para muitos as manifestações populares de junho vão batizar 2013 de “o ano que ninguém entendeu”, o senhor tem uma tese para ida às ruas. O que já dá para dizer?
MN: “O ano que ninguém entendeu” é divertido, mas não explica bem uma coisa: entender o que aconteceu depende de quais serão os próximos movimentos. Eu produzi um esquema para tentar interpretar baseado na história da transição política brasileira pós-redemocratização. No Brasil, houve um fechamento do sistema político contra a sociedade, no sentido de que ele não é mais um modelo para a sociedade de como as pessoas podem se opor umas às outras, democraticamente. Quando se vai para a rua, entra o “ninguém entende”, porque não existe mais um modelo para as pessoas se basearem.
CE: O que há de comum entre as manifestações brasileiras e as do resto do mundo?
MN: Não se pode comparar manifestações contra ditaduras, como no Oriente Médio, com manifestações em países democráticos. Entre os países democráticos, há coisas em comum, como a força centrífuga do neoliberalismo que atuou para forçar um centrão na década de 90 - embora isso tem perdido força claramente com a crise econômica a partir de 2008. A segunda coisa que é importante e comum é a quebra do monopólio da formação da opinião. O que significa internet e redes em termos de como as pessoas se informam e formam sua própria opinião e sua vontade política. Quando se tem a internet e as redes, a mídia tradicional continua sendo importante, mas elas não tem mais o monopólio da formação da opinião. Antes, a mídia tradicional pautava, e as pessoas tinham de se posicionar diante dessa pauta. E agora não mais. Por duas razões: primeiro porque há opiniões alternativas, você não responde só sim ou não à pauta. E agora a mídia tradicional também tem como fonte as redes sociais e a internet. Você tem circuito, e não algo de mão única. E é subterrâneo. Em todos os países foi assim, porque a mídia tradicional não estava vendo, os partidos não estavam vendo e de repente isso eclode. Quando se diz que não se está entendendo, temos dizer "que bom". Tem muita gente entendendo de maneira muito diferente. Não existe uma interpretação canônica que se fixou. É uma revolução democrática, em que você não tem nenhuma unidade forçada como teve em toda a redemocratização. Agora você pode ir para rua ao lado de um cara que pensa o contrário de você e tudo bem. O seu problema como teórico é dizer qual o traço de união disso, não a unidade. O traço de união é ser contra a blindagem do sistema político.
CE: Há quem diga que essas manifestações captaram um mal-estar das elites, da classe média tradicional. O que acha?
MN: Não consigo entender como é a elite ou a classe média tradicional poderia ter tanta gente. Para mim, trata-se de uma tentativa de neutralizar as revoltas. Se você olhar as pesquisas de opinião, elas são aprovadas por três quartos da população brasileira. Três quartos da população brasileira é “revolta das elites”? Não! Mas isso não significa que todo tipo de manifestação tenha sido igual. E isso é uma característica de uma erupção democrática. Você começa a ter questões locais, regionais, nacionais e globais. Não só transpassa toda a sociedade brasileira como todas as pautas. Uma pessoa que fica olhando só a Paulista ou o centro do Rio de Janeiro não está entendendo que esse troço é muito maior. As pessoas têm a sensação de que elas têm poder de novo. Sarney era acusado de tudo no mundo, e Lula chegava e dizia: “Não, o Sarney é da minha coalizão, ele não pode ser considerado uma pessoa qualquer”. Isso para mim é um marco do fechamento do sistema político, em 2009. As pessoas sentiam-se impotentes: eu faço o que, então, se é esse acordão e eu não posso fazer nada contra? As pessoas poderiam protestar sobre tudo, não havia um comportamento a seguir. Por isso é uma erupção democrática, um choque de democracia.
CE: O combate à corrupção foi uma das pautas dos protestos. Pode-se dizer que há uma diferença em relação à abordagem do tema no passado. Essa geração é menos tolerante com a corrupção?
MN: Sem dúvida. Uma das coisas importantes é que jovens organizados e que se consideram esquerda dizem que combate à corrupção é uma pauta da esquerda, sim. E voltaram a uma pauta que era do PT lá atrás, na década de 80. Transformar corrupção na principal bandeira política é um equívoco porque você pensa a corrupção independentemente do sistema político. Tem que pensar as duas coisas juntas. É uma pauta para todo mundo. o que pode fazer diferença é politizar a corrupção. Dizer: "olha, a corrupção é a consequência de um sistema política pemedebizado". Só se faz isso com uma reforma radical do sistema político. A combate a pessoas corruptas não vai resolver.
CE: E o discurso das ruas tem essa sofisticação?
MN: Ainda não. É isso que está em disputa.
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